A DANÇA DE SHIVA
“Shiva, o senhor do linga, consorte de Shakti-Devi, é
também Nataraja, “Rei dos Dançarinos”.
A dança é uma ancestral forma de magia. O dançarino
ganha novas e maiores dimensões, torna-se um ser
dotado de poderes sobrenaturais.
Sua personalidade se transforma. Como a ioga, a dança
leva ao transe, ao êxtase, à vivência do divino. À
compreensão da própria e secreta natureza individual
e, por fim, à fusão com a essência divina. Por isso,
na Índia, a dança conviveu lado a lado com as severas
práticas ascéticas dos eremitas- jejum, exercícios
respiratórios, introversão absoluta.
Para, exercer a magia, para lançar encantamento sobre
outrem, é preciso que o indivíduo em primeiro lugar
encante a si mesmo.
Coisa que pode ser efetuada tanto através da dança
como da prece, do jejum e da meditação.
O que explica ser Shiva, portanto não só o arquiiogue
dos deuses, mas também, necessariamente, o senhor da
dança.
O propósito da dança pantomímica é transformar o
dançarino no demônio, deus ou entidade telúrica que
ele personificar.
A dança de guerra, por exemplo, converte os homens que
a executam em guerreiros; desperta-lhes as virtudes
bélicas, transformando-os em heróis destemidos.
A dança pantomima da caçada antecipa e assegura,
através da magia, o êxito da caça, convertendo os
participantes em infalíveis caçadores.
Para despertar de sua letargia os poderes naturais
referentes à fecundidade, os dançarinos imitam, com
sua mímica, os deuses da vegetação, da sexualidade e
da chuva.
A dança é um ato criador.
Suscita uma situação nova, e desperta no dançarino uma
personalidade nova e superior.
Possui uma função cosmogônica, isto é, desperta as
energias latentes para que confiram forma ao universo.
Numa escala universal, Shiva é o Dançarino Cósmico; em
sua manifestação dançante incorpora em si mesmo a
energia eterna que, simultaneamente, torna manifesta.
As forças reunidas e projetadas no seu girar frenético
e incessante são os poderes de evolução, preservação
e dissolução do universo.
A natureza e todas as suas criaturas são efeito dessa
dança eterna.
Shiva-Nataraja está representado numa bela série de
bronzes do sul da Índia, que datam dos séculos X e XII
d. C.
Os detalhes da imagem devem ser interpretados, de
acordo com a tradição hindu, como uma complexa
alegoria pictórica.
Ver-se- á que a mão direita superior porta, para a
marcação do ritmo, um pequeno tambor, cuja forma
sugere uma ampulheta.
Ele sugere o som, veículo da fala e portador da
revelação, tradição, encantamento, magia e verdade
divina.
Além disso, na Índia o som é associado ao éter, o
primeiro dos cinco elementos.
O Éter é a manifestação primordial e mais sutilmente
penetrante da Substância divina.
Dele emanaram, durante a evolução do universo, todos
os outros elementos: ar, fogo, água e terra.
Portanto, som e éter, unidos, significam o primeiro e
genuinamente verdadeiro momento da criação; são a
energia produtiva do Absoluto, em sua prístina força
cosmogenética.
No lado oposto, a mão esquerda superior, cujos dedos
formam uma meia-lua, mostra na palma uma língua de
fogo.
O fogo é o elemento da destruição do mundo.
No término do Kali-Yuga, o fogo aniquilará o corpo da
criação, sendo ele próprio então apagado pelo oceano
do vazio.
O equilíbrio das mãos ilustra o equilíbrio
criação-destruição no bailado cósmico.
Como exercício da crueldade dos opostos, o
transcendental mostra-se através da máscara do mestre
enigmático: criação incessante versus um insaciável
apetite de destruição: som contra chama.
O campo da terrível interação é o sítio onde ocorre a
dança do universo, que o bailar divino torna
esplêndido e horrendo.
O gesto de “não temas” confere proteção e paz, é feito
pela segunda mão direita, enquanto a outra mão
esquerda, na extremidade do braço transversal ao
peito, aponta para baixo, para o pé esquerdo erguido.
Este pé significa a liberação; nele o devoto encontra
refúgio e salvação.
Deve ser venerado, para que seja alcançada a união com
o Absoluto.
O gesto da mão que o aponta imita a tromba distendida
ou a “mão do elefante”, lembrando-nos o filho de
Shiva, Ganesha, o Removedor de Obstáculos.
A divindade é representada dançando sobre o corpo
prostrado de um anão-demônio.
Este é Apasmara-Purusha, “Homem ou Demônio (purusha),
chamado “Esquecimento” ou “Imprudência (apasmara)”.
Simboliza a cegueira da vida, a ignorância humana.
Subjuga-o a obtenção da verdadeira sabedoria.
Nesta está a libertação da servidão do mundo.
Um anel de chamas e luz emerge do deus e o circunda.
Diz-se que significa os processos vitais do universo e
de sua criaturas, e a natureza em sua dança, a
mover-se como se a impulsionasse um deus a dançar
dentro dela.
Ao mesmo tempo, diz-se que significa a energia da
sabedoria, a luz transcendental do conhecimento da
verdade, cuja dança emana da personificação do todo.
Outro significado alegórico atribuído ao halo
flamejante refere-se à sílaba sagrada AUM ou OM.("A"
mais "U" tem o som de "O") Considera-se esta expressão
mística (aye, amen), enraizada na sagrada linguagem
védica de prece e encantamento, como uma expressão
afirmativa da totalidade da criação.
“A” é o estado do despertar da consciência, de envolta
com seu mundo de experiência rudimentar.
“U” é o estado de consciência onírica, que vivencia as
sutis formas do sonho.
“M” é o estado do sono sem sonhos, a condição natural
da consciência imóvel e indiferenciada, na qual toda a
experiência é dissolvida numa não-experiência
bem-aventurada, num todo de consciência, num todo de
consciência potencial.
O silêncio que se segue à pronunciação trinaria A, U e
M, é a não-manifestação última, na qual se reflete a
perfeita supraconsciência, que se funde com a essência
pura e transcendental da realidade divina – Brahman é
vivenciado como Atman, o Self.
Por isso, AUM, fundido com o silêncio circundante, é
um som simbólico da totalidade da
existência-consciência, e ao mesmo tempo, sua
afirmação voluntária.
É provável que a origem do anel flamejante se refira
ao aspecto destrutivo de Shiva-Rudra; mas a
destruição, em Shiva, é, afinal idêntica à liberação.
Shiva enquanto Dançarino Cósmico personifica e
manifesta a energia eterna em suas “cinco atividades”:
1) Criação – o derramar ou expandir;
2) Preservação – a duração;
3) Destruição o retorno ou reabsorção;
4) Encobrimento – o velar do verdadeiro ser por trás
das vestes e máscaras das aparências, da indiferença,
da manifestação de Maya
5) Graça – aceitação do devoto, o reconhecimento do
empenho religioso do iogue, a concessão da paz através
de uma manifestação reveladora.
As três primeiras e as duas últimas são equivalentes,
grupos cooperantes de antagonismos mútuos; todas são
manifestadas pelo deus.
Ele as revela de modo não apenas simultâneo, mas
seqüencial. São simbolizadas pelas posições das mãos e
dos pés – sendo as três mãos superiores, criação,
conservação e destruição, respectivamente; o pé
plantado no Esquecimento é o “encobrimento” e o outro
erguido, a Graça; a “mão do elefante” assinala a
ligação entre as três e os dois, prometendo paz à alma
que vivencia a relação.
Todas as cinco atividades são manifestadas em
seqüência, simultaneamente à pulsação de cada momento,
através das transformações temporais”
(Mitos e Símbolos na arte e Civilização da Índia,
Heinrich Zimmer, 1993, Editora Palas,
Athena,p.122-125)
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