"A jornada rumo à totalidade não é algo que se possa fazer da noite para o dia. É uma dança composta de vários passos, com muitos parceiros, muitas voltas e rodopios, muitas músicas, muitos estilos. Ela é imprevisível. E leva tanto tempo quanto for necessário."

Sobre a riqueza da Dança Tribal!

SEMENTES, ESPELHOS, MOEDAS, FIBRAS...: A BRICOLAGEM DA DANÇA
TRIBAL E UMA NOVA EXPRESSÃO DO SAGRADO FEMININO
Luciana Carlos Celestino
(PósGraduação
em Ciências Sociais UFRN)
Se compreendermos a dança, e especificamente a contemporânea Dança Tribal, para além
da manifestação estética/artística, mas como expressão mítica, como uma linguagem
semelhante a dos mitos e dos sonhos, como primordial veículo de comunicação, poderemos
ver a conexão entre a criação poética resultante desta dança e o envolvimento que
vivenciam as dançarinas com os sonhos de Gaia. Usando tudo que está à mão (bricolagem)
a Dança Tribal cria e recria, unindo culturas (marchetaria), tendo como principal proposta a
reciclagem em seu amplo contexto, a reconexão com o planeta, a compreensão de que a
humanidade é parte de Gaia, colocando em evidência a relação natureza/cultura. A Dança
Tribal incomoda ao trazer à tona a responsabilidade de nossos atos e a necessidade de
desenvolver ações artísticas, sociais, políticas que visem a ressacralização do mundo, que é
o cerne de toda a questão.
Palavraschaves:
Dança Tribal – Criação Poética – Bricolagem Mitologia
A Dança Tribal
A Dança Tribal, também chamada Estilo Tribal, Tribal fusion, entre outras
denominações, é uma vertente surgida nos EUA, em 1969, quando a dançarina Jamila
Salimpour, ao fazer uma viagem ao Oriente, se encantou com os costumes dos povos
tribais. Fascinada pela dança, pela estética e pelo universo místico do Oriente, Jamila
resolve acrescentar e mesclar os elementos que havia conhecido na viagem. Junto à sua
trupe Bal Anat, Jamila passou a desenvolver coreografias que utilizavam passos
característicos da dança oriental e acessórios das danças folclóricas. Ela tomou como base
as lendas tradicionais do Oriente para criar uma espécie de dançateatro,
criando um
figurino inspirado no vestuário típico das mulheres orientais, que ficou como uma das
características mais marcantes do Tribal.
Uma forte característica trazida das danças tribais é a coletividade. Não há
quase nenhuma performance solo no Estilo Tribal. De acordo com a dançarina Paula Braz
(2008), do trupe natalense Cia Xamã Tribal, as dançarinas, como numa tribo, celebram a
vida e a dançam em grupo. Nos anos 1980, novas trupes já haviam se espalhado pelos
EUA. Masha Archer, discípula de Jamila, ensina à Carolena Nericcio a técnica criada por
Jamila baseada nos trabalhos de repetição e condicionamento muscular do Ballet Clássico
adaptados aos movimentos das danças étnicas (BRAZ, 2008).
Incentivada pelas diferenciações do novo estilo, Carolena forma sua própria
trupe e dá novos contornos à história do Estilo Tribal. Com sua trupe Fat Chance Belly
Dance, inseriu no Tribal a característica mais forte do Estilo Tribal Americano ou
American Tribal Style (ATS): a improvisação coordenada. Este sistema de improvisos
parece uma brincadeira de "siga o líder" e baseiase
numa série de códigos e sinais
corporais que as bailarinas aprendem, trupe a trupe. Esses sinais indicam qual será o
próximo movimento a realizar, quando haverá transições, trocas de liderança, etc. Uma
nova postura foi adotada pelas dançarinas desse estilo, inspirada no flamenco, com posições
corporais diferenciadas visando maior amplitude aos movimentos.
Nos anos 1990, o Estilo Tribal passou a demonstrar a presença de outras
danças. Além da Dança do Ventre, introduziu Dança Indiana, Flamenco, dança moderna e
jazz. Nasce então o Neo Tribal, um subestilo
que já não se mantém preso ao sistema de
sinalização do Estilo Tribal Americano, trabalha com peças coreografadas e ganha
liberdade com a adição de novos movimentos, inovações cênicas, acessórios e composição
de figurino.
Em 2002, no Brasil, na cidade de São Paulo, a bailarina Shaide Halim cria a
Cia. Halim Dança Étnica Contemporânea – a primeira trupe tribal do Brasil. Foi o início do
Estilo Tribal Brasileiro. Desenvolvendo um trabalho baseado nestas modificações pelas
quais o estilo passou, Shaide inova mais uma vez ao trabalhar com as danças de uma forma
mais homogênea. A Cia. Halim tem seu trabalho coreográfico orientado pela composição
musical, dando ênfase a uma ou outra modalidade de dança, seja oriental, indiana, africana
ou brasileira, a partir do tema musical.
Estilo Tribal é uma modalidade de dança que, tendo como base a dança do
ventre, funde arquétipos, conceitos e movimentos de danças étnicas das
mais variadas regiões, como o Flamenco, a Dança Indiana e danças
folclóricas de diversas partes do Oriente, desde as tradicionais
manifestações folclóricas já bem conhecidas pelas bailarinas de dança do
ventre às danças tribais da África Central, chegando até as longínquas
tradições das populações islâmicas do Tajiquistão (HALIM, 2008).
O Estilo Tribal Brasileiro chegou a Porto Alegre no ano de 2006, através de um
workshop realizado por Shaide Halim, produzido pelo Estúdio Mahaila Diluzz, que agora
vem ensinando o método Cia Halim.
Não é folclore, nem é etnicamente tradicional. O Estilo Tribal é uma
modalidade de dança que funde conceitos e movimentos de danças
étnicas das mais variadas regiões, como Dança do Ventre, Flamenco,
Dança Indiana e Dança Havaiana, além de folclores de diversas partes do
Oriente e danças tribais da África Central (HALIM, 2008).
Falar sobre Tribal é mostrar, com o corpo, a rede cultural dos povos do mundo.
O termo se refere à comunidade, grupo, família, aspectos do feminino que trabalham a
preservação da espécie, o cuidado com o outro, a manutenção da vida e do lar. É uma dança
propositalmente ecológica em seu figurino, pois faz utilização de sementes, flores, conchas
e tudo o mais que remeta à ancestralidade e naturalidade.
Cada trupe ou tribo cuida dos seus integrantes objetivando a harmonia do
todo. Para dançar Tribal é preciso conhecer as etnias que irão compor o
estilo através de estudo, o que fará com que nos aproximemos das
diversidades culturais, dando margem à nossa compreensão das mesmas
(HALIM, 2008)
Este estudo, segundo Saide Halim leva a percepção de que nas diferenças
étnicas, justamente, estão grandes semelhanças de movimentos. Ricos em significados e
símbolos próprios, trazidos à luz do Tribal através das mesclas, harmonizamse
quanto à
intenção de tornar pública a arte de cada cultura. Dançar Tribal é para essas mulheres uma
celebração e tem por finalidade propor a paz e a harmonia entre os povos de todas as raças
e credos, características que elas denominam de Sagrado Feminino. Para exaltar este
sagrado usam o corpo e seus movimentos: a dança.
A dança que permeia tudo, que é macrocósmica e microcósmica, é também
expressão, comunicação. Na era da globalização, da liquifação dos valores mais primordiais
o Tribal parece vir na contramão
desse processo, utilizandose
dele como mais uma
ferramenta para refazer o jogo da ritualidade, da sacralidade, da criação. “Assim, o Tribal
seria a dança do novo milênio, da universalização, da globalização. A Dança do
futuro!”(HALIM, 2008)
O espírito das tribos
Mistura de dança, arte e etnias de todo o mundo, a Dança Tribal se propõe estar
além de qualquer fronteira. O Estilo Tribal parece preencher a lacuna aberta na liberdade
criativa, poética dessas mulheres, o que elas chamam de mistério feminino oriental. Existe,
de fato, uma construção imagética forte que permite um retorno ao passado e ao mesmo
tempo, uma perspectiva de futuro. Interessante observar que esta dança parece ter êxito no
intento de unir o moderno ao ancestral.
Mesmo ainda pouco conhecido, esse estilo se tornou uma nova referência
estética de dança, figurino e música. A Dança Tribal permite a liberdade criativa, as artistas
podem ampliar seu vocabulário gestual, utilizando técnicas tanto ocidentais quanto
orientais, tuda criação é bem vinda no Tribal.
Talvez por ser tão diferente há que ver, ouvir, pensar e avaliar... E
quando se entende, ficamos deliciosamente presos por esta magia que é o
"mundo tribal"! (I Festival de dança, 2008)
De acordo como a dançarina americana Sharon Kihara (apud HALIM, 2008),
integrante do grupo Bellydance Superstars, desde a criação do ATS, na década de 1960, até
as fusões recentes do tribal com outras linhas estéticas de dança, o que encontramos no
Estilo Tribal são “mulheres unidas para realizar algo muito poderoso juntas, transformando
a si mesmas e as sociedades que as cercam, através da cultura”.
Um processo de bricolagem
De fato, a Dança Tribal não é apenas de um estilo de dança, se trata muito mais
de uma concepção de mundo. É preciso compreender que estas dançarinas têm uma
intenção clara, exaltar o que elas chamam de valores ligados ao feminino e ao planeta
Terra, como matriz criadora. Tudo indica que essa foi a intenção latente da criadora do
Estilo Tribal. Os primeiros passos, as primeiras coreografias, os primeiros figurinos, tudo
que Jamila criou como Dança Tribal, parecia querer falar para além de uma forma de dança
contemporânea. Quando Jamila deu início ao seu projeto, ou seja em meados da década de
1970, o grande grito da sociedade ecoava uma preocupação latente com o Planeta. Os
Hippies e a emancipação feminina apontavam fortemente para essa grande mudança que
ainda está em processo. Outro fator importante na construção da Dança Tribal é a
precupação com a reciclagem, com o lixo, problemas que já eram percebidos nas décadas
de 1970 e 1980.
Desse modo, a Dança Tribal é um processo de criação constante, aquilo que
LéviStrauss
(1976) identificaria como legítima bricolagem. Nunca é a mesma, está sempre
em mutação, tomando os elementos que encontra, reciclando, e recriando novas coisas.
Como um caleidoscópio, hora ressalta o figurino, hora as marcações cênicas, num momento
vêse
a estética soturna da arte gótica, noutro a força ardente do Flamenco, noutro instante
ainda a suavidade da dança do ventre e a leveza exótica das mãos formando mudras1.
A reciclagem está em tudo, no aproveitamento de tecidos, materiais sintéticos e
naturais, no uso de conhas, penas e sementes. O elemento tradicional, remetendo aos
enfeites das mulheres orientais, aparece nas moedas, nos braceletes, que ao final se
misturam aos adornos indianos, aos xáles espanhóis, às flores havainas, à chita nordestina.
O Tribal é assim, um mosáico, uma marcheteria, que burilada, colada, unida pelas mãos dos
círculos de mulheres, formam novas imagens, numa poesia palpável.
Quando LéviStrauss
usa a imagem da bricolagem para distinguir o pensamento
mítico do pensamento científico, mostra que o primeiro se apóia no signo e o segundo se
vale dos conceitos. Que a bricolagem é, portanto, um ato comunicante. Observa ainda que
1 Mudras: Os Mudras são posturas feitas com as mãos usadas no Yoga na dança e nas imagens sagradas do
Budismo para despertar e harmonizar os centros energéticos do corpo. Usados na iconografia Budista e no
Vajrayana, cheios de simbolismo e beleza, esses gestos criam uma conexão do praticante com a energia do
Buddha que é invocado pela repetição dos mantras.
as criações da bricolagem se reduzem sempre a um arranjo novo de elementos, já que novos
universos nascem de seus fragmentos.
(...) a poesia da bricolage lhe vem, também, e sobretudo, de que não se
limita a cumprir ou executar; “fala”, não somente com as coisas, (...),
como também, por meio das coisas: contando, pelas escolhas que faz
entre possibilidades limitadas, o caráter e a vida de seu autor. Sem jamais
completar seu projeto, o bricoleur põelhe
sempre algo de si mesmo
(LÉVISTRAUSS,
1976, p. 42).
Esta dança/poesia, que é o Tribal, fundi não só sons e estilos de dança, mas
elementos que poderiam ser considerados lixo, transformandoos
em objetos comunicantes
que falam em conjunto com toda a obra: dança, figurino, sons, música e teatro. Tudo
comunicando uma intenção latente de retomar valores considerados perdidos ou
esquecidos, valores que hoje começam a ser percebidos como urgentes. As dançarinas se
referem ao Tribal sem considerálo
como algo definitivo, consideramno
como um estilo de
dança sempre em mutação, que tem uma linha mestra apoiada na postura que caracteriza o
Tribal. Mas o estilo é aberto à criação, privilegiando sempre a presença de elementos
próprios de cada grupo, de cada cultura. O bricoleur pondo sempre algo de si mesmo, pois
o Tribal é autocriação, é uma dança com alma, precisa falar a quem dança e a quem vê.
O que está por traz da Dança Tribal?
Poderiase
pensar que a origem da Dança Tribal se restringiria à década de
1970, quando foi criada. Mas, por traz desse movimento podemos observar que, na
verdade esta dança é produto de uma onda cultural, estética, exotérica, que começou a se
formar e tomar corpo no cenário mundial a partir das décadas de 1960 e 1970. Ela diz
respeito a um discurso que falava da sacralidade do planeta, movimento que culminou com
o surgimento da cultura Hippie; dos grupos de Bruxaria, surgidos na Inglaterra e depois
disseminados nos Estados Unidos; de uma revalorização do Xamanismo; da emancipação
feminina; e do crescimento de movimentos ecológicos. Mais recentemente a redescoberta e
revalorização do Oriente, em especial da Índia, tem levado esta onda em direção a uma
tentativa de reaproximação homem/natureza, relação que acreditavase
ser de separação,
através de uma retomada das filosofias orientais. No bojo desse processo, está o discurso de
revalorização do Feminino, termo entendido em amplo aspecto como um conjunto de
saberes, comportamentos e valores mais ligados a uma visão feminina do mundo. Valores e
capacidades que acreditase
foram se perdendo ao longo da história humana.
Antes que se possa afirmar que estes são pensamentos de pessoas idealistas
demais, é preciso saber que uma boa parcela de cientistas no mundo vêm tratando com
muita seriedade esse tema. O matemático Ralph Abraham, por exemplo, alerta para uma
necessária revificação do mundo arcaico, uma retomada do ritual, uma revitalização de
religiões que considerem mais o feminino e a sacralidade do mundo. Segundo ele, a perda
dessa sacralidade vem se dando durante dez mil anos. No entanto, o que se perdeu não pode
ser revivido em sua forma original. “Talvez tenhamos que utilizar a tecnologia do vídeo e
do cinema” , diz Abraham (1998, p. 172). Outro cientista, o biólogo Rupert Sheldrake
afirma que um importante caminho para a ressacralização do mundo seria a prática de
festivais e a sacralização do tempo. Para ele, a ressacralização do tempo é uma maneira de
reconecção com as tradições religiosas, permite encontrar as raízes précristãs
que
subjazem as manifestações religiosas atuais. “Na tradição atual, há um cordão vivo
contínuo, que remonta diretamente às sociedades xamânicas précristãs
da Europa e às
sociedades xamânicas précristãs
do Oriente Médio” (SHELDRAKE,1998, p. 173).
Já o ecólogo Terence McKenna (1998) aponta uma previsão do teórico dos
meios de comunicação e precursor dos estudos midiológicos Marshall McLuhan, de que
uma mudança na cultura letrada, que tem como base o alfabeto fonético, para a cultura
eletrônica alteraria a proporção com que os sentidos participam da percepção das coisas. A
nova proporção criada pela mídia eletrônica equivale, segundo McLuhan, a que existiu na
Europa medieval antes da invenção da imprensa. Antes do “feudalismo eletrônico”, olhavase
cada manuscrito individual, pois refletiam a mão do seu autor. Com a imprensa, deixouse
de olhar e passouse
a ler.
A mídia eletrônica e a televisão levam o ser humano a novamente olhar e não
mais ler. Segundo McKenna (Idem, p. 174), “precisamos reunir uma gestalt, uma imagem,
não podemos simplesmente lêla”.
As consequëncias previstas por McLuhan se realizaram
e as nações se dissolveram numa aldeia global, numa sociedade planetária onde as pessoas
vivem isoladas em ilhas caseiras cercadas de informação por todos os lados. Como tudo
que existe, essa onda possui aspectos positivos e outros negativos, enquanto a informação
se democratizou foi também banalizada. Aliás, na sociedade midiática informatizada tudo
parece banalizarse.
Talvez esteja aí a fonte da dessacralização do mundo ou de um
deslocamento do sagrado, do natural para o artificial. O que importa, aponta Abraham
(1998), é identificar através da arqueologia do conhecimento, a essência do que ocorreu no
passado, das falhas cometidas e ajustálas
dentro das formas modernas para que não
tenhamos outra Idade Média em pleno século XXI.
Temos que reconhecer, por exemplo, que a população total agora é
maior. Isso significa que a reciclagem é obrigatória. Isso significa que a
consciência verde, a consciência de Gaia, terá de desempenhar um papel
principal nos rituais realizados em vários dias. A ordem é criar uma nova
mitologia capaz de organizar diferentes estilos de igrejas no caminho da
evolução convergente. (ABRAHAM, 1998, p. 175)
É muito provável que o trabalho das dançarinas do Estilo Tribal tenha sua
origem na conexão com a consciência de Gaia. É conhecida a teoria de McKenna de que o
planeta Terra tem uma mente pensante, uma Ânima Mundi ou alma do mundo.. Esse
conceito não é novo, Platão já se referia a alma do mundo, mas só agora a ciência parece
começar a se abrir para essa idéia. Semelhante à rede mundial de computadores, a Internet,
a mente de Gaia une a tudo por meio de fios comunicacionais, os campos morfogenéticos
de Sheldrake. Isso significa que de algum modo a Terra pode comunicarse
com a
humanidade e esses cientístas acreditam que as práticas xamânicas e a arte são algumas
dessas formas. A Dança Tribal deve ser entendida, nesse âmbito, não apenas como uma
manifestação artística, mas como aquilo que a Arte tem de mais próximo da expressão
mítica, como uma linguagem semelhante a dos mitos e dos sonhos.
Desse modo, poderemos ver a conexão entre a criação poética desta dança, o
envolvimento que vivenciam as dançarinas com os sonhos de Gaia. Para a criação poética é
preciso deixar trabalhar a ânima, no devaneio, como quer Bachelard (2006). Devanear não
seria entrar em contato com os sonhos de Gaia? Se assim for a Dança Tribal tem tido êxito
nesse processo.
Reafirmando o poder da Deusa
As personificações da Deusa aparecem aos homens como a anima e suas
representações, causandolhes
fascínio e ao mesmo tempo medo. Nas dançarinas do Tribal
as faces da anima parecem adiquirir um caráter de máscara, com a qual as mulheres se
transvestem e se mostram com a representação escolhida, como a própria Ísis de Apuleio2.
Desse modo, a Dança Tribal préfigurase
como uma forma de reafirmação de um poder, um
poder que as dançarinas acreditam ser uma junção da delicadeza e da força. Onde o animus
da Mulher Selvagem (ESTÉS, 1997) é equilibrado com a reabilitação consciente da anima.
Mais, com o reconhecimento dessa presença e da sua fundamental função criadora. Pois é
antes a anima que sonha, que poetiza o movimento no corpo, para que ele seja depois
realizado pela potência do animus (BACHELARD, 2006).
O movimento, deste modo, deixando de ser mera ação mecânica e tornandose
dança, poesia do corpo em movimento, torna gestos, torções, rodopios, olhares, não apenas
ações isoladas, mas comunicação, simbolização, ritualização e, desse modo, sacralização do
instante, do espaço e do corpo. A este processo as dançarinas entrevistadas chamam de
reafirmação, de resgate do Feminino. Quando, na verdade, procedem a uma restituição, no
instante da criação, da potencia feminina na consciência. Potencia que esteve sempre
presente mesmo não notada conscientemente.
O que se sabe é que há na história da humanidade a presença constante do
Feminino, como o bem mostrou Neumann (1996), sob a representação de uma deusa de
muitas faces. Para Eliade (1998), a primeira associação que se faz da Deusa na história das
religiões no Ocidente é com a imagem da Mãe. A MãeTerra
para os povos caçadorescoletores
e, posteriormente, a MãeTerra,
esposa do PaiCéu,
para os povos agricultores.
Campbell (1999) reforça essa idéia afirmando que a floração básica da civilização ocidental
2 Ísis atendendo às preces gentis e devotadas do personagem asno de Apuleio lhe diz alguns dos dez mil
nomes pelos quais é chamada e dálhe
a sua maior dádiva, transformalhe
novamente em homem. (APULEIO
apud GRAVES, 2003, p. 93).
ocorreu nos grandes vales dos rios Nilo, TigreEufrates,
Indo, e posteriormente Ganges3
onde a Deusa era soberana. A partir do quarto milênio antes de Cristo os indoeuropeus
começaram a descer do norte e do sul, destruindo cidades da noite para o dia. Neste
processo trouxeram sua mitologia de orientação masculina e guerreira que foi sendo
imposta através da invasão e da guerra aos povos que estavam ao longo do seu trajeto. E a
Deusa foi relegada a segundo plano.
Os invasores semitas eram pastores de cabras e ovelhas, os indoeuropeus
eram
pastores de gado. Ambos primitivamente, eram caçadores, de modo que também eram
“assassinos, nômades e adoradores de deuses guerreiros, lançadores de raios, como Zeus ou
Jeová” (CAMPBELL, 1999, p. 180). O mito de Tiamat nada mais é do que a narrativa
metafórica desse processo. Tiamat, o Abismo, a Fonte inexaurível é morta por Marduk, o
deus babilônico de então, e seu corpo despedaçado passa a enfeitar os céus. Segundo
Campbell a proeza de Marduk se constitui, na verdade, num ato de suprema revogação,
pois na mitologia da Deusa ela própria já é o universo, os céus. “Mas o mito de orientação
masculina se impõe, e ele se torna, aparentemente, o criador4” (1999, p.180).
No entanto, milênios de patriarcado e séculos de desenvolvimento tecnológico,
não destruíram o aspecto essencial da divindade que surgiu às margens do Egeu. Campbell
enxerga, diante das descobertas científicas, que a mitologia da Deusa tanto não morreu
como esta voltando. Que ela não perdeu seu significado original, mas ganhou uma nova
perspectiva mais abrangente. Passou a ser compreendida não mais como apenas a MãeTerra
que produz a partir da matéria, mas como a própria origem de tudo, a matriz, o campo
que produz tudo. Segundo Campbell, as descobertas científicas não mataram o mito. “Ah,
eu acho que o mito esta voltando. Há um jovem cientista, hoje, que esta usando a expressão
‘campo morfogenético’, o campo que produz formas. Eis o que a Deusa é, o campo que
produz formas” (CAMPBELL, 1990, p. 179).
Campo mórfico ou morfogenético é a provável memória inerente a todo
organismo, segundo o biólogo Rupert Sheldrake. Essa memória é um
padrão de repetição que ocorre à medida que o tempo passa e que cada
tipo de organismo forma uma memória específica, coletiva e cumulativa.
De acordo com Sheldrake (1994), as regularidades da natureza são, dessa
forma, habituais e as coisas são como sempre foram, o universo, por sua
vez, é um sistema de hábitos em evolução. ‘Uma coisa que está clara’,
diz Sheldrake, ‘é o fato de que o caos é feminino, e que a criação a partir
do caos se parece com a criação a partir do útero, uma potencialidade que
tudo contém e que emerge da escuridão’ (p.73).
O culto à Deusa sobreviveu a períodos históricos e suas adversidades na figura
da Magna Mater dos Bálcãs e do mundo grego, por exemplo. E vive em continuidade sob
as suas múltiplas formas e inúmeros nomes. Riane Eisler em seu livro O Cálice e a Espada
(1989) afirma que é possível perceber esta continuidade religiosa em deidades tão
3 Cujo nome deriva de Ganga, uma deusa. (CAMPBELL, 1999, p. 179)
4 Grifo do autor.
conhecidas quanto: Ísis, Nut e Maat, no Egito; Isthar, Astarte e Lilith, no Crescente Fértil;
Deméter, Core e Hera, na Grécia; e Atárgatis, Ceres e Cibele, em Roma.
Mesmo depois, em sua própria herança judaicocristã,
ainda podemos
identificálas
na Rainha dos Céus, cujos arvoredos são queimados na
Bíblia, na Shekhina da tradição cabalística hebraica e na Virgem Maria
Católica, a Sagrada Mãe de Deus (EISLER, 1989, p. 33).
Uma das explicações claras para essa continuidade da Deusa ao longo da
trajetória humana, mesmo que em alguns momentos ela pareça não estar presente no
imaginário religioso da humanidade, é encontrada na filosofia das religiões consagradas à
Deusa na Índia, onde segundo Campbell, a simbologia dela é dominante até hoje. Maya
como é chamado o divino feminino, é o espaço e o tempo, e o mistério para além Dela é o
mistério para além dos pares de opostos.
Assim, não é masculina nem feminina. Nem é nem deixa de ser. Mas
tudo está dentro dela, de modo que os deuses são seus filhos. Tudo que
você vê, tudo aquilo em que possa pensar, é produto da Deusa
(CAMPBELL, 1999, p. 177).
A esses tantos nomes, tantas faces, Jung (2000) relacionou as imagens
arquetípicas do Feminino. Elas surgem não só como deusas, remetendo a figuras de
mulheres, mas também como imagens que se relacionam de algum modo ao universo do
Feminino como o mar, as embarcações, o castelo, a igreja, a casa, a caverna, o sepulcro,
etc. Bachelard (2006) dedicouse
ao estudo dessas imagens como frutos do processo de
criação poética, que se dá em estado de devaneio, mas, de fato, há nessas imagens do
feminino uma energia, uma força que foi chamada de poder do Feminino, ou poder da
Deusa.
O Tribal como construção de uma nova expressão do sagrado feminino
Parece apropriado que se tome a Dança Tribal como uma construção, em
processo, de uma nova expressão do Sagrado Feminino já que ela se configura como fruto
de um movimento consciente e inconsciente de ressacralização do mundo. Se esse mundo é
tido como Gaia, uma deusa, entendese
que junto, intríseco a isso, se dê a ressacralização
do Feminino. É claro que essa discussão do Sagrado é polêmica e tem muitas abordagens
convergentes e divergentes. No entanto, o que essas dançarinas chamam de sagrado
feminino, e sua retomada, deve ser entendido na sua essência, como já foi explicado, não ao
pé da letra.
A essência é a retomada de valores que reaproximam o homem de sua condição
natural, que objetivam, ao final, a junção naturaza e cultura. Na era do digital, do
instantâneo, do líquido, do descartável, essa essência fala poeticamente que não se deve
esquecer o analógico, o tempo da germinação, que nada surge nas prateleiras do
supermercado como por encanto. Que as pessoas e as coisas não podem ser descartadas,
que o lixo não vai se desmaterializar.
A essência do discurso, da expressão do sagrado feminino, é a necessidade do
envolvimento indivíduo a indivíduo, nação a nação, humanidade e planeta. Só assim é
possível de fato haver um desenvolvimento que privilegie novas formas de viver que
incluem os saberes tradicionais, a poesia e o imaginário. Sem imaginário não haveria
humanidade, e o imaginário é ainda um vasto campo a ser melhor explorado e entendido.
Referências
ABRAHAM, R.; McKENNA, T.; SHELDRAKE,R. Caos, criatividade e o retorno do
sagrado: triálogos na fronteira do Ocidente.São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1998.
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1999.
EISLER, Riane. O cálice e a espada: nossa história, nosso futuro. Trad.: Terezinha Santos.
Rio de Janeiro: Imago, 1989.
ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
ELIADE, Mircea. História das crenças e das idéias religiosas. Tomo I. Volume I. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1978.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
ESTÉS, Clarice. Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do
arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
GRAVES, Robert. A Deusa Branca: uma gramática histórica do mito poético. Trad.: Bento
de Lima. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
JUNG, Carl Gustav. O inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo. 1942.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2000.
LÉVISTRAUSS,
Claude. O pensamento selvagem. Trad. Maria Celeste da Costa e Souza
e Almir de Oliveira Aguiar. São Paulo: Nacional, 1976.
NEUMANN, Erich. A Grande Mãe um
estudo fenomenológico da constituição feminina
do inconsciente. São Paulo: Cultrix, 1996.
Entrevistas
HALIM, Shaide. Entrevista cedida em abril de 2008.
BRAZ, Paula. Entrevista cedida em abril de 2008.
Referências na Internet
Fonte: http://festival.dancatribal.com.br/festival.asp (acesso em 21/04/2008